domingo, 11 de dezembro de 2011

A FUGA

Angústia que se bebe gole a gole. Que dor incrível aprender a ser gente, que sabor amargo tem a realidade humana. Carne sobre ossos, sangue. O tempo não passa e eu continuo aqui sentado nesta estrada árida e quente. Como vim parar aqui? Uma lembrança empoeirada. Saí de casa empurrado pelo medo, conheci meus monstros. Meus fantasmas voltaram todos. Eu que me sentia curado, disposto e feliz, permaneço aqui sentado enquanto tomo fôlego pra continuar a caminhada. A estrada é cada vez mais estreita, a vegetação mudou várias vezes. As árvores agora estão secas. Não existem muitas flores que sobrevivam a este clima. Avistei, a uns quilômetros atrás, um campo de sempre-vivas. Servem para o sustento. Me ponho a imaginar, eu, garoto da cidade, a família que mora na casa de pau-a-pique, de chão batido, ao lado da pequena plantação. Posso ver os retratos coloridos a mão e a vassoura feita de palha. Água, por favor água, estou com sede.
 O sol continua quente sobre meus ombros, tontura e cansaço misturam-se com a dura determinação. Me levanto.  Como se seguindo por esse caminho, forçando os passos, um depois do outro, step by step, conseguisse me afastar do mal. Algo que eu tenho de fazer. Como se este percurso fosse me libertar, me purificar. Eu nunca fui o tipo de cara que planejaria uma viagem de auto-conhecimento, em busca de “luz interior”, blá blá blá, bullshit. E por isso me parece estranho o modo como esta estrada apertada, cada vez mais apertada, se apresenta sob meus pés como única salvação.
Minha casa ficou pra trás, minha gente ficou pra trás. Aproveito cada pensamento, tento registrá-los nas fotos, nas imagens. Espero que elas tenham o poder de me trazer de volta pra este suplício auto-imposto, para estes devaneios.
 Estou com medo de desmaiar. Ultrapassando meus limites, nunca fui tão longe em direção alguma. A mochila pesa como se eu estivesse carregando uma montanha rochosa.  Aquela manhã me volta à memória, como se tudo tivesse acontecido ontem e, no entanto se passaram vinte anos. Vinte longos anos.
 O cheiro da comida estragada na geladeira, a bagunça no quarto, os resquícios da noite anterior. A fumaça dos cigarros se agarrou as paredes e parece que nunca mais irá embora. Como fede.  Nada se parece com o que era. Eu não sou mais o mesmo e a casa também não. As casas também se transformam, modificam-se e poluem-se com nossos movimentos. Espero que outras tenham destinos melhores do que esta, do que “aquela” velha casa que deixei para trás juntos com seus humores. Quero deixá-la na estrada, mas parece que nunca serei capaz.
O cabelo longo, rebelde, todo solto.
O corpo bronzeado artificialmente. E por que mesmo? Nunca entendi, não era necessário, inverno e verão e sua pele mantinha sempre a mesma tonalidade. Agregava aqueles olhos doces uma rudeza provocada, forçada pelos anos transcorridos no bairro boêmio da cidade.  O cheiro fresco ficou para trás, sobrou o azedume da bebida no dia seguinte.
 O vomito. Uma briga feia. Um vidro quebrado. Uma relação conturbada. Um adeus escarrado pela raiva e eu nunca mais esqueci.
 Aproximo-me de uma cidadezinha, se é que se pode chamar assim. Casas muito simples. Meu país e eu não o conheço realmente. Rezo para que os próximos dias não sejam tão quentes. Rezo, acho que pela primeira vez em vida, por um pouco de chuva. Sei que a mochila ficará ainda mais pesada, mas eu preciso de água.
 A chuva não veio e a angústia ainda não foi embora. Pra que lado fica o mar???
O vento no rosto, o peso da água salgada. Sinto falta.
 O bar é qualquer coisa, as mesas de plástico com a propaganda da cerveja. A loira gostosa estampada na parede. O velho bêbado tomando cachaça e conversando com o bodegueiro. O cenário típico para lembranças ruins. Quanto pessimismo. Melhor pensar na cerveja estupidamente gelada. Escolho uma mesa próxima a parede, não gosto de me sentar no centro dos ambientes, me sinto mais seguro nos cantos.
 Sexo pago. Suprir necessidades, esse é o resumo. Por que será que ela nunca retornou a minha ligação, gostaria de voltar pela estrada para vê-la apenas uma vez mais. 


Porto Alegre
Dezembro de 2011
Luiza Mattos