Angústia que se bebe
gole a gole. Que dor incrível aprender a ser gente, que sabor amargo tem a
realidade humana. Carne sobre ossos, sangue. O tempo não passa e eu
continuo aqui sentado nesta estrada árida e quente. Como vim parar aqui? Uma
lembrança empoeirada. Saí de casa empurrado pelo medo, conheci meus monstros. Meus
fantasmas voltaram todos. Eu que me sentia curado, disposto e feliz, permaneço
aqui sentado enquanto tomo fôlego pra continuar a caminhada. A estrada é cada vez
mais estreita, a vegetação mudou várias vezes. As árvores agora estão secas. Não existem muitas flores que sobrevivam a este clima. Avistei, a uns
quilômetros atrás, um campo de sempre-vivas. Servem para o sustento. Me
ponho a imaginar, eu, garoto da cidade, a família que mora na casa de
pau-a-pique, de chão batido, ao lado da pequena plantação. Posso ver os
retratos coloridos a mão e a vassoura feita de palha. Água, por favor água,
estou com sede.
O sol continua quente
sobre meus ombros, tontura e cansaço misturam-se com a dura determinação. Me
levanto. Como se seguindo por esse
caminho, forçando os passos, um depois do outro, step by step, conseguisse me afastar do mal. Algo que eu tenho de
fazer. Como se este percurso fosse me libertar, me purificar. Eu nunca fui o
tipo de cara que planejaria uma viagem de auto-conhecimento, em busca de “luz
interior”, blá blá blá, bullshit. E por isso me
parece estranho o modo como esta estrada apertada, cada vez mais apertada, se
apresenta sob meus pés como única salvação.
Minha casa ficou pra
trás, minha gente ficou pra trás. Aproveito cada pensamento, tento registrá-los
nas fotos, nas imagens. Espero que elas tenham o poder de me trazer de volta
pra este suplício auto-imposto, para estes devaneios.
Estou com medo de
desmaiar. Ultrapassando meus limites, nunca fui tão longe em direção
alguma. A mochila pesa como se eu estivesse carregando uma montanha
rochosa. Aquela manhã me volta à
memória, como se tudo tivesse acontecido ontem e, no entanto se passaram vinte
anos. Vinte longos anos.
O cheiro da comida
estragada na geladeira, a bagunça no quarto, os resquícios da noite anterior. A fumaça dos cigarros
se agarrou as paredes e parece que nunca mais irá embora. Como fede. Nada se parece com o que era. Eu não sou mais
o mesmo e a casa também não. As casas também se transformam, modificam-se e
poluem-se com nossos movimentos. Espero que outras tenham destinos melhores do
que esta, do que “aquela” velha casa que deixei para trás juntos com seus
humores. Quero deixá-la na estrada, mas parece que nunca serei capaz.
O cabelo longo,
rebelde, todo solto.
O corpo bronzeado
artificialmente. E por que mesmo? Nunca entendi, não era necessário, inverno e
verão e sua pele mantinha sempre a mesma tonalidade. Agregava aqueles olhos
doces uma rudeza provocada, forçada pelos anos transcorridos no bairro boêmio
da cidade. O cheiro fresco ficou para
trás, sobrou o azedume da bebida no dia seguinte.
O vomito. Uma briga feia. Um vidro quebrado. Uma
relação conturbada. Um adeus escarrado pela raiva e eu nunca mais esqueci.
Aproximo-me de uma
cidadezinha, se é que se pode chamar assim. Casas muito simples. Meu país e eu
não o conheço realmente. Rezo para que os próximos dias não sejam tão quentes. Rezo, acho
que pela primeira vez em vida, por um pouco de chuva. Sei que a mochila ficará
ainda mais pesada, mas eu preciso de água.
A chuva não veio e a
angústia ainda não foi embora. Pra que lado fica o mar???
O vento no rosto, o
peso da água salgada. Sinto falta.
O bar é qualquer coisa,
as mesas de plástico com a propaganda da cerveja. A loira gostosa estampada na
parede. O velho bêbado tomando cachaça e conversando com o bodegueiro. O
cenário típico para lembranças ruins. Quanto pessimismo. Melhor pensar na
cerveja estupidamente gelada. Escolho uma mesa próxima a parede, não gosto de
me sentar no centro dos ambientes, me sinto mais seguro nos cantos.
Sexo pago. Suprir
necessidades, esse é o resumo. Por que será que ela nunca retornou a minha
ligação, gostaria de voltar pela estrada para vê-la apenas uma vez mais.
Porto Alegre
Dezembro de 2011
Luiza Mattos