quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Trecho de SARA III


Por carta descrevo os cômodos da casa. Como se a descrição a trouxesse para perto. Este é meu desejo maior, fazer destas paredes amareladas nosso refúgio. Um lugar para onde sua mente possa voar enquanto ouves os gritos histéricos de Dona Juliana. Partilhamos nossas dores aos pedaços e esses pedaços de humilhação compartilhada se tornam menores e disformes. 
Enquanto ela te faz passar e repassar as camisas já maltratadas pelo tempo até que estejam perfeitamente engomadas, e enganem a quem tem o olhar pouco domado para estas coisas, podes fugir pra cá. Posso imaginar-te diante da cuba. Enquanto preparas a mistura de água e amido de milho teu rosto triste, iluminado pelo sol que entra pela vidraça, parece ainda mais bonito.

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Minha querida,

Estável o tempo, firmado em cinza profundo. Sei que adoras o tempo acinzentado. Levantei cedo da cama e fiz um café preto bem forte. Comi antes uma fruta, uma ameixa que estava já meio enrugada na geladeira. Ainda assim muito gostosa. Gosto de ameixas, de nectarinas. Estou tentando cuidar da saúde, do corpo que sustenta a mente. Avanço pouco nos escritos.
O apartamento está pouco a pouco tomando forma. Ontem encontrei um caixote de feira meio vagabundo e o trouxe pra casa. Encostei o caixote na mesa que fica sob a janela menor. As plantas que estavam espalhadas formam agora uma pequena floresta. Talvez não farias o mesmo, mas assim não me esqueço de nenhuma delas. Quero que sobrevivam ao calor do verão, todas elas. Espero sobreviver também. Não gosto muito do calor, no entanto faço gosto de viver nesta cidade tão quente. Engaçadas estas minhas escolhas.
Ontem à noite o Roberto apareceu por aqui, trouxe uma garrafa de vinho tinto. Uma delícia sul-africana. Ainda não conhecia e soube que custa pouco, comprarei pra nós quando estiveres aqui. Vais gostar.
As notícias não são as melhores. Ele ofereceu algum dinheiro pelos quadros, pouca coisa. Vai tentar revender e me pagará se conseguir. Por enquanto fica com eles. Espero que não os estrague. Faz tanto por mim o Roberto e eu sempre exigindo mais. É claro que cuidará dos quadros, sempre cuida de tudo, tem zelo. O dinheiro do mês está acabando, mas ainda tenho bastante comida em casa. Se não me mexer muito dará tudo certo, e mais um mês terá ido embora.
Vou parando de fumar aos poucos.

Saudades imensas,
Paulo.

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